Crítica – A Forma da Água (2017)


A vida é a ruína dos nossos planos?


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Me peguei pensando durante cerca de 10 minutos sobre como começar a escrever essa crítica. Poderia falar sobre o diretor, Guillermo del Toro, sua história ou sobre como ele usa momentos históricos para contextualizar sua obra sem parecer forçado. Poderia ainda fazer uma breve análise sobre o amor e suas diversas formas. Ou até fazer comparações com outras obras. Enfim, ideias surgiram aos montes. Mas todas elas podem ser desenvolvidas ao longo dessa “crítica” (meio análise) que tem tudo para ser a mais pessoal escrita por mim até o momento. O que quero dizer é que não há outra forma de começar a escrever se não dizendo francamente que este é um dos filmes mais belos, se não o mais, que assisti em muito tempo. Nada nele é gratuito ou por acaso. Tudo, desde um gesto, foi pensado e tem significado. Definitivamente, é a obra-prima do diretor.

Pode-se dizer que A Forma da Água é o irmão mais velho de O Labirinto do Fauno (2006). Explico: Ambos dirigidos por del Toro (Círculo de Fogo, Hellboy) são fábulas modernas, trazem animais agindo como humanos, princesas, metáforas e se transvestem de escapistas para sutilmente apresentarem conceitos morais e lições de vida. E este filme mais recente é “mais velho” por apresentar um amadurecimento do diretor, que também é o roteirista, nos temas e na sua técnica e estética.

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No filme de 2006, somos apresentados a Ophelia, uma menina espanhola vivendo com sua família na Espanha pós-Guerra Civil em 1944 que, na verdade, é a encarnação de uma princesa do submundo. Em A Forma da Água, o contexto histórico é a Guerra Fria, no início dos anos 60, e a protagonista também é uma princesa de outro mundo, Elisa Esposito, interpretada brilhantemente por Sally Hawkins (Godzilla, Blue Jasmine), uma órfã que perdeu a voz ainda criança quando sua faringe foi cortada. Elisa trabalha em um laboratório secreto do governo como faxineira ao lado da tagarela Zelda Dalila, vivida por Octavia Spencer (Histórias Cruzadas, Estrelas Além do Tempo). Lá, uma criatura mágica tida como Deus por tribos amazônicas é feita prisioneira pelo nefasto Coronel Richard Strickland, interpretado por Michael Shannon (Animais Noturnos, Homem de Aço) e pelo cientista Dr. Robert Hoffstetler, vivido por Michael Stuhlbarg (The Post – A Guerra Secreta, Me Chame Pelo Seu Nome). Elisa logo se sente atraída pela forma humanoide e se vê impelida a liberar a criatura de seu cativeiro. Bem no estilo de Free Willy (1993).

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Tal atração se dá seja porque a criatura representa um “semelhante” à faxineira na ausência de comunicação verbal, seja porque, como Elisa mesma disse, o ser aquático a enxerga pelo que ela é, sem defeitos. A obra se utiliza da propriedade fluida da água, que toma a forma do recipiente no qual se encontra, para falar sobre como cada um tem uma visão diferente sobre outra pessoa, nesse caso, sobre a criatura em questão. E essa visão geralmente espelha mais a personalidade do observador do que do observado.

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A água ainda recebe outros significados ao longo da obra. Como em muitas culturas e religiões, no filme, ela purifica, transforma e cura. A água é a protagonista de uma das cenas mais belas do filme: aquela em que Elisa, sentada num ônibus, vê dois pingos dançando, se entrelaçando e por fim se tornando um só no vidro da janela. Além disso, Elisa tem uma forte relação com a água na medida que seu alimento preferido é ovo cozido e é na banheira cheia onde ela se sente mais à vontade para exercer suas necessidades sexuais. O sexo, inclusive, é usado para extrapolar as barreiras sociais e se aprofundar nas personalidades. O carro do antagonista é uma representação externa do falo que ele precisa ostentar e da manutenção do sonho americano. Ele sente a necessidade de se afirmar sempre como homem “bom” e “decente” mesmo sem acreditar no que diz. Por isso, o desejo de subjugar e calar sua parceira. Sua alma perversa ganha correspondência física ao ter dois dedos cortados e recolocados cirurgicamente. Ao longo do filme, os dedos necrosam para mostrar sua falta de sensibilidade e incompletude como ser humano.

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Nesse sentido, as cores também são usadas como símbolos. Na casa de Elisa e no laboratório, o verde é predominante para representar esperança, liberdade e vitalidade. Também remete à cor da floresta amazônica e, sempre opaco, ao lodo dos rios. Já a casa do Coronel sofre forte influência do amarelo, a ponto, inclusive, de causar um certo desconforto, passando a ideia de estado de alerta e da “prosperidade” da representação do sonho americano. Quando há a consumação do amor entre a faxineira e a criatura, o figurino de Elisa muda para o vermelho simbolizando o sentimento entre os dois nesse conto que se assemelha a uma versão para adultos de A Bela e a Fera (1991).

O longa ainda presta uma grande homenagem ao cinema e seus gêneros. Na fotografia, as cenas envolvendo os russos recebe um tom noir com um jogo de claro-escuro, alto contraste e iluminação low key. Também há tributo aos musicais e ao cinema mudo tanto nos aspectos técnicos quanto na história, com personagens interagindo com músicas ou mesmo assistindo a filmes pela televisão.

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Outro símbolo do filme é o nome do cinema abaixo do apartamento de Elisa: Orpheus. Na mitologia grega, Orfeu foi um poeta e músico. Com sua música, ele conseguiu entrar no mundo dos mortos para resgatar sua amada. Em A Forma da Água, a relação de Elisa com a música é muito forte, apesar de sua inabilidade de falar. As canções do filme geralmente brincam com a diegese. O que parece ser extra-diegético em um plano, é parte da ação no plano seguinte. Isso e o trabalho de edição de som enriquecem a experiência sensorial do filme. Do mesmo modo, o trabalho de Alexandre Desplat (O Curioso Caso de Beijamin Button, O Grande Hotel Budapeste) na trilha sonora é primoroso. Misturando trilha original com canções populares, ele consegue transmitir emoção verdadeira e envolver o espectador naquela história de fantasia.

Para além do som, o trabalho da montagem merece ser reconhecido. Ora ele é acelerado para mostrar rotina das personagens ora, calmo, dando tempo para os planos e para os sentimentos. E o que seria do filme sem o magnífico design de produção que recriou à perfeição a atmosfera dos anos 60 com um pé no fantástico, no imaginário. Alguns cenários, e aqui fica clara a predileção de Guillermo del Toro por locações e cenários reais em detrimento do fundo verde, com forte predominância de uma cor específica, refletem muito mais a perspectiva da personagem do que a realidade, como numa memória, num sonho.

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Nada no roteiro é apresentado por acaso. Até o mais simples gesto encontra seu correspondente, uma ideia encontra sua conclusão mais ao final do filme, exatamente como em uma poesia. Tudo é muito bem utilizado, muito bem encaixado. As rimas visuais se fazem presente. Os personagens são tridimensionais e del Toro faz questão de abordar temas sociais como o preconceito sem parecer forçado: Elisa é deficiente física, Zelda é negra e Giles, vivido por Richard Jenkins (Eu, Eu Mesmo & Irene, Queime Depois de Ler), o vizinho da protagonista, é um desenhista homossexual na época em que a publicidade começava a usar fotografia ao invés de desenhos. Todos são deixados de lado pela sociedade, mas cada um lida com o fato de maneira diferente. Até o vilão tem suas motivações: ele foi criado para acreditar naquilo. E não existe a disputa entre ideologia política bom e ruim, como acontece em muitos filmes sobre a Guerra Fria. Aqui, há indivíduos com boas intenções em ambos os lados.

O elenco inteiro está incrível. Sally Hawkins não precisa falar para transmitir emoções. Sua Elisa é carismática, ingênua e diz tudo com o olhar e com os gestos. Doug Jones (A Dama na Água, O Labirinto do Fauno), intérprete da Criatura, também faz um trabalho corporal bastante competente causando medo e empatia. Sua imprevisibilidade traz à tona o lado animalesco desse ser fantasioso ora se assemelhando a um macaco, ora a um réptil, ora a um peixe. Tantas conversas acontecem entre os protagonistas mudos sem ser proferida nenhuma palavra. E Michael Shannon entrega um vilão odioso, um ser repugnante.

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Como toda fábula, a história pode ser bastante previsível, mas a intenção do filme não é surpreender o espectador. De certa forma, o que é gratificante é o caminho percorrido, a perfeição em todos os detalhes e a simplicidade e sutiliza com quais o conto é narrado. Não vale a pena ficar se perguntando o que ali era real e o que era imaginação, pois assim perde-se a força da mensagem e a beleza dos sentidos. Perde-se o entendimento de que uma deficiência pode ser, na verdade, uma dádiva divina. A água em suas diversas formas, em sua onipresença em todos os seres vivos e em sua simplicidade (passa despercebida e invisível na maioria das vezes), assim como o amor (ou Deus), é a força motriz da vida.

Nota:

Nota 7.0

Excelente


Título Original: The Shape of Water
Data de Lançamento: 1 de dezembro de 2017
Estreia no Brasil: 1 de fevereiro de 2018
Direção: Guillermo del Toro
Duração: 123 minutos
Elenco: Sally Hawkins, Doug Jones, Michael Shannon, Richard Jenkins, Michael Stuhlbarg, Octavia Spencer
Gêneros: Fantasia, Romance, Drama
País: EUA


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